Tamara Franklin: “O hip-hop é minha religião”

Em Fugio, a rapper mineira Tamara Franklin conclui etapa de autoconhecimento que se iniciou no álbum anterior – Foto: Bruno Queiroz

Expoente da rica cena do hip hop de Minas Gerais, a artista Tamara Franklin fala sobre como se inspirou no princípio do aquilombamento para produzir seu álbum Fugio – Rotas de Fuga Pro Aquilombamento. O título do trabalho vem de letreiros em anúncios de jornais brasileiros no século XIX anunciando a busca por pessoas que haviam fugido da escravidão. À procura de sua ancestralidade sem perder o foco no presente, a MC uniu a poesia de seu altivo canto falado a diversas outras sonoridades. Além de detalhes da produção do álbum, ela conta como foi seu encontro com a cultura hip hop, que hoje também considera como sua religião. Você também pode ouvir o áudio da entrevista, no player no fim da página.

Thaís Aragão — Ela está de álbum novo, chamado Fugio, que evoca o princípio do aquilombamento. Tamara Franklin, muito obrigada pela oportunidade de conversar com você.

Tamara Franklin — Salve! O prazer é meu, de estar aqui. Máxima satisfação. Um beijo e obrigada pela recepção de todo mundo que tá ouvindo, que ouve a programação. E é nós! Vamos conversar.

Antes de falar do disco novo, que é o segundo da sua carreira, gostaria de saber um pouco mais sobre como você entrou no hip-hop. Qual foi o seu primeiro contato e como entrou no hip-hop?

Bom, meu primeiro contato com o hip-hop foi através do rap. Eu era criança e me lembro até hoje desse primeiro contato, que foi passando pelas estações de rádio. Ouvi a música “Mágico de Oz”, dos Racionais MC’s. Eu tinha aproximadamente seis anos de idade quando isso rolou, e lembro. Sempre gostei muito das palavras, da sonoridade, da poesia. E sempre gostei de coisas que me impactassem, de ouvir coisas fortes, que tivessem alguma relevância. E a música “Mágico de Oz” conta a história de uma criança em situação de rua, usuário de crack. Ouvir sobre isso, naquele momento, foi muito impactante pra mim.

Depois de um tempo, tive um outro contato com hip-hop, e aí foi quando comecei a fazer hip-hop. Foi quando começou um grupo de dança aqui, na minha quebrada. Eu falo de quando comecei a fazer hip-hop com outras pessoas né? Porque desde os oito anos de idade sempre gostei de escrever poesias e já musicava essas poesias. Eu consegui lincar com o que era o rap e entender que eu fazia que o que eu fazia com as palavras já estava mais ou menos por ali. Gostava muito de brincar com a sonoridade, com as rimas. Então, eu já tinha letras, escrevia e tal.

E aí, um espaço pra congregar isso com os outros foi através da dança. A dança é um dos quatro elementos da cultura hip-hop. Aí, passei a minha pré-adolescência e a minha adolescência inteira treinando hip-hop dance, entre outros estilos de dança, nessa associação comunitária junto com amigos, amigas. Enfim, foi muito importante pra minha formação como pessoa, como profissional.

Tamara Franklin no clipe de “Encosta na parede”, com Berê MC – Foto: Bruno Queiroz

De onde vem a palavra “fugio”, que dá nome ao seu novo álbum?

Fugio era a primeira palavra que tinha nos anúncios de escravizados, em jornais antigos. Tem alguns arquivos desses jornais, desses anúncios. E tinha muitos anúncios comunicando a fuga de escravizados. Aí, comecei a refletir muito sobre o que era essa luta, né? Sobre a fuga como forma de resistência à escravidão, uma forma de negar a passividade. Porque às vezes apresenta-se o período da escravidão no Brasil e a figura do negro como alguém muito passivo a essa escravidão. Inclusive há pessoas do time do “os negros vieram pra cá porque eles quiseram ser escravizados”, “eles escolheram” [risos].

Bom, piadas prontas à parte, isso me chamou muita atenção sabe? Achei muito importante falar dessa fuga, nesse período, e falar da fuga que a população preta no Brasil precisa fazer ainda hoje. A fuga do que o preconceito espera pra gente, em termos de intelecto, em termos de produção, em termos de formação acadêmica, em termos de autoestima, de concepção estética.

Eu acho que a intenção de Fugio é muito falar sobre o quanto a gente é foda, sabe? E sobre o quanto descobrir isso é um caminho de fugas para essa escravidão mental que o racismo insiste em querer perpetuar dentro da população negra. Então é um trabalho que fala muito sobre autoconhecimento. Tenho um outro disco que se chama Anônima, que começa falando de identidade, onde eu não tenho bem uma definição. As próprias músicas, quando você vai ouvindo uma e outra, não têm bem aquela definição identitária. Mostrava essa busca que eu tinha por conhecer quem eu era, minha história. Acho que Fugio vem para terminar essa conversa, concretizar isso. Eu me encontro num momento da vida assim que eu tô muito bem definida com essa identidade.

E se você não me cortar eu falo até amanhã tá? [risos]

Não tem problema! Já que você falou de estética, Fugio traz sonoridades que, embora a gente escute em outras músicas negras contemporâneas no Brasil, você traz de um lugar muito específico, que é Minas Gerais. São sonoridades muito interessantes. Gostaria que você falasse do Congo Feminino de Nossa Senhora do Rosário, do Coral Vozes de Campanhã, e tudo isso aí, que existe ao redor de onde você mora, em Ribeirão das Neves, na grande Belo Horizonte.

Campanhã era o nome da fazenda de onde origina-se a minha cidade, Ribeirão das Neves. Meu bairro está muito perto do bairro Areias, e esse bairro Areias tem a primeira Igreja do Rosário daqui de Ribeirão das Neves, da região de Justinópolis. Então, não sei se essa região… Eu vou falando, eu vou me arrepiando. Porque só fui descobrir o quanto estava próxima da minha ancestralidade e da minha história, que eu ia tão longe, fazia tantas curvas pra poder conhecer… Só fui me dar conta muito recentemente, quando fui conhecer essa história, quando tive acesso ao Reinado de Nossa Senhora do Rosário, que é algo muito preto e forte aqui em Minas. Todo ano tem os festejos do reinado de Nossa Senhora, que inclui o candombe, a folia de reis, maçambique, e por aí vão várias outras linguagens.

Todo ano tem os festejos do reinado, que são festas e desfiles ancestrais. A primeira vez que vi o cortejo das guardas em BH foi como se eu visse minha história desfilando na rua. É algo muito forte, muito bonito, e algo que me tocou tanto quanto o rap, quando ouvi o rap pela primeira vez. E aí eu falei: “véio, eu preciso muito congregar essas duas coisas, porque isso é muito forte pra mim”. Eu tive um insight. Não sei se é um insight ou uma revelação espiritual de outro mundo [risos], dessa ancestralidade, ou se foi algo que acessei na minha memória genética. Mas, pra mim, fez sentido que a ancestralidade habita na contemporaneidade, sabe?

“A primeira vez que vi o cortejo das guardas de Congo em BH foi como se visse minha história desfilando na rua. Me tocou tanto quanto quando ouvi o rap pela primeira vez.”

Tamara Franklin

E eu consegui ver muito dessa cultura ancestral, desse poder ancestral, no rap hoje. A maneira de se fazer rap, o quanto esse rap também é forte aqui no solo mineiro, o quanto ele traz um discurso de luta racial e de reconhecimento dessa identidade, dessa ancestralidade. E aí eu me propus a isso. Eu me doei pro universo. Falei: “eu quero fazer essa pesquisa, quero fazer esse disco. Não sei onde, não sei como, não sei quando. Mas eu estou aí pra isso.” E comecei a buscar. Foi muito interessante que as coisas foram chegando.

O Camilo Gan mais o Rafael Dejero fizeram a direção musical do disco. Eles se ofereceram. Na época que concebi o disco, eles me ofereceram uma banda pronta, montada, e se ofereceram para acompanhar o trabalho. São dois músicos foda, com uma formação muito pesada – tanto teórica, acadêmica, quanto na prática mesmo, fazendo música, fazendo cultura popular. E o Camilo Gan é um grande mestre da cultura preta mineira, que tem aí essa vivência de quilombo mesmo, das comunidades tradicionais daqui de Minas, e que foi agregando, foi trazendo conteúdo, trazendo material. Foi uma construção muito da hora, porque a gente começou a ir nos quilombos, e entender e conversar com os mais velhos e resgatar. Foi um processo que durou cinco anos.

A produção desse disco foi uma caminhadinha [risos]. Mas assim, o resultado… Ele veio no momento que precisava vir. Nasceu em 2020, em plena pandemia, quando as manifestações na rua, da população preta, ficam fortes. Tem o episódio do George Floyd e esse levante negro, esse aquilombamento em busca de justiça. Então, acho que é um disco que fala sobre autoconhecimento. E autoconhecimento cura, né? E esse é um momento em que todos nós estamos precisando muito de cura, de voltar pra raiz, de entender nossa ancestralidade, olhar o que foi antes pra gente conseguir ressignificar o presente, e o que a gente vai fazer daqui pra frente também. Só me sinto grata.

Fala mais sobre a parceria com o produtor musical Chico Neves. Como foi unir tudo e sair com esse conceito do álbum?

O processo, ele foi se construindo. Na verdade, não fui atrás de nada. A gente foi se encontrando no meio do percurso. A banda é uma banda que é do meu bloco também, o Bloco Afro Magia Negra. Eu sou bem recente no bloco, mas os meninos já tocam juntos há muitos e muitos anos, e integraram vários outros projetos também, juntos. Então a banda funciona muito bem. Um já entende o outro e as coisas vão se encaixando. Eu tinha as letras, concebia as letras. Compunha, às vezes, com alguma referência, algum beat de internet mesmo, e ia escrevendo. Aí, apresentava pra banda. A gente ficou ensaiando quase uns três anos, porque a gente… [risos] Não só ensaiando, né? A gente se reunia pra criar as coisas juntos. Tinha rolê que a gente conseguia fazer os arranjos no primeiro dia, que as coisas fluíam e depois a gente ia só aperfeiçoando. Mas foi muito gostoso, esse tempo de convivência.

Foi a minha primeira experiência criando junto. Eu sou a loba solitária, fico totalmente absorvida nos meus processos de criação. Sou aquela pessoa que cria de porta fechada, sem nenhum barulho. E foi muito louca a experiência. Cresci muito, conseguindo criar junto com os meninos, ouvir as sugestões. Todos nós nos tratamos o tempo todo como artistas, não só como um profissional que tá ali cumprindo, executando as coisas. Todos criaram: o guitarrista Giuliano Coura, o baterista Dgar Siqueira, o DJ Pooh nas picapes, Rafael Degero que fez a direção musical, os baixos, entre outras coisas, e Camilo Gan também, que assinou a direção e é percussionista. Todo mundo contribuiu para além, até, do seu instrumento. Foi um processo bem coletivo, mesmo.

E aí veio a oportunidade de produzir com o Chico Neves, algo que achei que tão cedo não fosse acontecer. Eu conheci Chico de ouvir mesmo as coisas que ele tinha produzido e que eu gostava: O Rappa, Nando Reis, Lenine, essa galera bem pesadinha, né? E aí o Rafa teve umas aulas com o Chico na UFMG, onde ele estava fazendo música. Inclusive ele concluiu o curso durante o percurso do disco. E aí, fez essa ponte.

Chico tá com estúdio aqui em Minas de novo, em Nova Lima. A gente tinha as guias das músicas e fomos apresentando pra ele e tal. Foi muito interessante, porque o lugar onde ele mora, o caminho que a gente fazia pra ir pro estúdio todos os dias, era o caminho da senzala pro engenho, que escravos fizeram por muito tempo. A gente foi ficar sabendo disso depois, o Chico veio falar. É até a estrada do engenho que ligava a gente: eu saindo de Neves, o Rafa [saindo] de Santa Luzia. Ele me acompanhou muito nesse processo, e a gente ia junto pelo mesmo caminho. Foi algo que tem um forte significado pra mim, também.

E o Chico foi só colocando as coisas no lugar, temperando, trazendo a concepção dele, organizando nossas ideias, que estavam muito pulsantes e, em algumas faixas, se misturando muito. E as coisas foram se ajeitando, dentro da cooperação de todos e da criação. Chico também foi um artista, não só um produtor que foi contratado ali pra masterizar e tal. Ele também tem a grande parcela dele de criação no processo. E saiu esse resultado maravilhoso!

A parte que mais gosto é que eu ficava com muito medo de ser um “copia e cola, sabe? Pega uma coisinha do congado, e pega uma coisinha aqui do rap, e cola uma coisa junto com a outra. A proposta desde o início era congregar duas coisas e ver o que que saía, musicalmente. E acho que teve um sucessinho dessa proposta [risos], porque quando a gente ouve às vezes identifica o rap, às vezes identifica os ritmos do reinado, mas fica sempre uma coisa misturada. A ideia era fazer essa ancestralidade musical abraçar também a contemporaneidade e as duas coisas se envolverem. E acho lindo, gente! Sou a pessoa mais suspeita desse mundo pra falar.

E MCs? Fala um pouco das parcerias que você trouxe pra rima.

No começo [da produção] do disco, a gente pensava em trazer umas parcerias bem fortes do mercado nacional. A gente cogitava chamar fulano, ciclano. Mas depois, do jeito que as coisas foram acontecendo, eu falei “Não faz o menor sentido, gente; eu tenho que trazer pessoas com quem tenho afinidade, que fazem parte do meu corre, pessoas que fazem sentido dentro dessa minha construção de identidade”.

Então quem participa do disco é o Coral Vozes de Campanhã, que é um coral daqui da minha cidade de que sou muito, muito fã. As meninas são incríveis! É um coral de mulheres. São mulheres da comunidade do Rosário de Justinópolis, do quilombo de Justinópolis, que se organizaram pra fazer música além da proposta religiosa, como uma proposta artística. E trouxeram esse canto aí, e aceitaram muito generosamente participar, com todo conhecimento e sabedoria que elas têm.

A Iza Sabino, Colombiana, Berê e Neghaum participam da faixa “Saúde pras irmãs”. Todos amigos queridos, ídolos, referências pra mim. E estão na minha caminhada, é gente com quem eu trombo na rua, gente com quem troco ideia, gente que eu amo, sabe? E que significam muito pra mim. E são MCs fodas, né? Digamos de passagem. Eu falei que a Berê participa de “Saúde pras irmãs”, mas ela participa só da “Encosta na parede” [risos]. Mas procurei trazer essas pessoas dentro do meu ciclo.

E o disco tem a participação da minha mãe. É o primeiro registro de voz que ela faz, na música “Pikena”, que é uma música que fala sobre muitas e muitas saudades que eu tenho, que eu sinto, sobre como que essas saudades me tocam. Sobretudo saudades da minha irmã caçula, que faleceu em 2011. É outro momento que me marca muito, porque por muitos anos eu, minha mãe, minha família, a gente não conseguia nem tocar no assunto, nem passar por esse assunto sem morrer de novo. E nós duas conseguimos cantar juntas sobre essa saudade, sobre essa dor… Sobre essa dor que foi reconstruída, né? E que ganhou outro significado. E isso é muito forte pra mim. Fugio foi generoso comigo aí, também. Ele me trouxe essa oportunidade.

E as Guardas, né? As Guardas dos Congos, que a gente usou colagens e que, enfim… Elas falam por si só. Elas trazem, por si só, o que elas são. Acho que eu sou mínima demais pra apresentá-las [risos].

Você já falou da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. A gente percebe, aí, o atravessamento das religiões afro-brasileiras. Mas você também tem uma formação evangélica, né? Algumas pessoas ficam confusas porque enxergam as coisas de forma muito separada. Gostaria de te perguntar sobre essa religiosidade multifacetada nessas experiências com diferentes religiões, quando você está buscando identidade. Como foi esse processo, do ponto de vista de uma religiosidade – não só em relação a igrejas, claro – mas, no curso de fazer esse disco?

Bom… enfim, uma salada religiosa [risos]. Ai, mas acho que nada eu escolhi. Eu sou uma pessoa que vou… Eu sou do vento, né, gente? Então o vento vai soprando e eu vou indo. Por muito tempo, eu achei que fosse um problema, achei que eu precisasse ser uma pessoa fixa e constante. Mas aceitei essa minha característica. Eu me proponho a conhecer as coisas mesmo, e parei de me culpar por mudar de ideias. No caso da religiosidade, eu nem falo que mudei de ideias: falo que eu conheci outras ideias e me abri pra isso.

Sou uma pessoa que tem toda uma educação evangélica. Fui da Igreja Batista desde que nasci. Fui apresentada, me batizei na Igreja Batista, já liderei ministérios e tal. E, em algum momento, passou a não fazer mais tanto sentido pra mim. Em casa, graças a Deus, tive uma educação muito flexível e muito do diálogo. Meus pais são pessoas incríveis. Tive a oportunidade assim de ter essa troca em casa: de que nem toda verdade é verdade, de que as coisas precisam ser questionadas, de que eu preciso estar me sentindo bem. Se eu não tô me sentindo bem num espaço, aquele espaço não me merece. De que, como mulher preta, eu tenho que defender o que penso, porque as pessoas vão achar o tempo todo que elas podem me impor o que elas pensam.

Então eu sempre fui ensinada, fui educada dentro desse discurso, e que muitas vezes se contrapunha ao que se dizia dentro da igreja. Aí vinham de novo meu pai e minha mãe falando: “Olha, nem tudo que o pastor fala é isso mesmo”, “se você quer seguir no caminho certo então escolhe o caminho da verdade, procura a sua própria verdade, você tem acesso a verdade”, “a verdade é o conhecimento, então vai buscando conhecimento, vai estudar isso e aquilo”, e tal.

“O caminho para ir ao estúdio todos os dias era o caminho da senzala para o engenho, que escravos fizeram por muito tempo. A gente foi saber depois.”

Tamara Franklin

Anônima [álbum de estreia de Tamara] me colocou num contato mais próximo da cena cultural mineira. Aí, eu conheci pessoas incríveis. Eu me aproximei do candomblé, que era algo que eu sempre achei que era demoníaco – e me culpei por gostar, mesmo sabendo que pudesse ser demoníaco! E me afastei o máximo que eu podia. Mas consegui me aproximar com uma outra visão, com mais conhecimento, através de pessoas que trocaram uma boa ideia comigo, em um nível diferente do nível que eu costumava discutir e conversar, dialogar sobre candomblé e religiões de matriz africana. Não sou iniciada. Às vezes eu frequento uma casa, e estou engatinhando nos conhecimentos. Se eu estiver muito avançada, eu tô engatinhando, né? [risos] Mas pra mim isso faz total sentido.

Comecei a conceder o hip-hop também como uma forma de manifestação religiosa, de religação espiritual com o que eu boto fé, com o que eu creio. Posso falar que, hoje, o hip-hop é a minha religião também. E vem essa coisa da cultura, dos quilombos, de Nossa Senhora do Rosário e o candombe, de onde também parte o candomblé aqui em Minas. Tem toda essa comunicação. O congado e o reinado de Nossa Senhora trazem muito dessa coisa da do sincretismo religioso, ao qual eu até tenho algumas… algumas ressalvas, mesmo. Mas nada que eu possa ou que seja no mínimo digna pra falar da cultura do reinado, porque é algo muito acima da minha vivência pessoal. Essa vivência das comunidades quilombolas, das comunidades tradicionais, dessa cultura, é algo muito maior do que a nossa a nossa humilde crítica, que às vezes a gente fa de um lugar muito acadêmico e muito superficial, sem saber. Quando você vai ver o que rola mesmo, na verdade, é algo muito maior, muito mais poderoso do que essa visão que a gente costuma ter.

Enfim, eu acho que Deus é a fonte de toda energia, sabe? Acredito que tudo vem dele, tudo parte dele, tudo volta pra ele. Eu acredito que ele tá na natureza, que nós somos manifestações desse Deus, nas nossas múltiplas formas, nas nossas múltiplas sabedorias, múltiplos conhecimentos. Eu acredito em Deus. Eu sou uma pessoa muito crente [risos]. Muito crente. Eu sou da oração, creio no poder da oração. Tenho uma fé muito forte mesmo, sabe? E recorro a essa fé. Mas hoje eu procuro não me rotular religiosamente e procuro absorver a sabedoria que cada manifestação espiritual traz. Sobretudo, eu tenho vivido isso de uma forma muito por meio das religiões de matriz africana.

Tamara Franklin: “Uma pergunta que Fugio respondeu é quem eu sou” – Foto: Marconi

Como é que você sente Fugio, em relação a Anônima? O que você buscou e o que realizou ali em 2015, e o que aconteceu agora?

Só depois que Fugio ficou pronto, eu fui entender Anônima. Eu paro ouvir e quando eu penso na música, na musicalidade em si, na minha rima, na minha composição, na minha interpretação, eu vejo que Anônima fazia perguntas que Fugio respondeu. Talvez uma pergunta que Fugio respondeu é tipo: quem eu sou? Estou tentando me localizar e aí Fugio vem. Quando eu me ouço em Fugio, me acho muito mais madura. Eu me sinto mais segura, mais confiante. Eu me sinto mais sóbria, me sinto com mais certeza do que eu queria fazer, de onde ia chegar. Eu me sinto alguém com um plano, sabe? [risos] E com uma mínima… Ai, gente, me foge a palavra! Mas eu sei, no mínimo, quem eu sou hoje, onde quero chegar. Acho que isso é muito importante.

Então, eu consigo falar sobre o Anônima como um início de uma fase de busca por mim mesma, que até coincide também com esse momento em que eu estava saindo dessa igreja evangélica, nessa transição mesmo, de espiritualidade também. E Fugio seria a conclusão disso. Conclusão… Conclusão é muita coisa, né? Mas pelo menos, talvez, a conclusão de uma etapa, sabe? Essa coisa da identidade… Talvez o que venha depois é: o que eu vou fazer com isso?

Então, surgiram perguntas novas com Fugio?

Acho que com Fugio surgiram preocupações novas. Eu estava muito preocupada em me definir. Hoje eu tô muito preocupada com o que eu posso fazer com essa definição, com essa força, com essa consciência. Era consciência a palavra que eu tava procurando [risos]. Onde é que eu posso chegar e como posso afetar os outros? Sei lá, eu tô muito mais confiante. E confiante também na minha capacidade de trazer outros temas. Tô com bastante música de amor. Acho que é também uma outra faceta dessa política, porque uma mulher preta que fala de amor, que fala da própria sexualidade, que fala dos próprios afetos, é por si só um ato político muito forte. Quero falar de coisas, trazer mensagens, impactar pelas palavras e conseguir estar cada vez mais próxima desse público, nos discursos e nas reflexões e nos acréscimos que a poesia pode trazer.

Esta entrevista foi ao ar no programa Zumbi #95, transmitido em 21 de março de 2021, pela Rádio Universitária FM, em Fortaleza-CE. Escute abaixo, na íntegra. O Zumbi tem o apoio da Secretaria de Cultura Artística da Universidade Federal do Ceará.

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